miércoles, 12 de agosto de 2009

Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens

Nísia Floresta Brasileira Augusta
1ª ed: Recife, 1832
Este texto fará parte da Antologia del Pensamiento Feminista nuestroamericano, organizado pela escritora, filósofa e ativista feminista Francesca Gargallo.

Introdução e Notas: Constância Lima Duarte, 4ª ed., 1989.
mulheres rebeldes, 2009.

Introdução[1]

Potlos supõe que os homens – quer sábios, quer ignorantes – sejam realmente superiores as mulheres[2] e que a dependência em que nos conservam é o verdadeiro estado para que a Natureza nos destinou, de sorte que avançar uma doutrina contrária a um prejuízo[3] tão inveterado, deve parecer um paradoxo tal, como outrora, quando se afirmava que noutro hemisfério existia homens que andavam com as cabeças diametralmente opostas as nossas; só um exame bem exato poderá fazer conhecer, que uma e outra cousa são conforme a verdade.
Mas quem fará este exame? Nós, interessadas na sua decisão, não podemos ser testemunhas nesta causa e muito menos Juízes; esta mesma razão impede a que os homens sejam admitidos a estas mesmas funções; entretanto, temos tanta justiça de nossa causa, que se os homens fossem mais justos e seus juízos menos corrompidos, nos sujeitaríamos voluntariamente a sua própria sentença.
Até hoje só tem se tratado superficialmente da diferença dos dois sexos. Todavia os homens arrastados pelo costume, prejuízo e interesse, sempre tiveram muita certeza em decidir a seu favor, porque a posse os colocava em estado de exercer a violência em lugar da justiça, e os homens de nosso tempo, guiados por este exemplo, tomaram a mesma liberdade sem mais algum exame, em vez de (para julgar cordatamente se seu sexo recebeu da Natureza alguma preeminência real sobre o nosso) se terem despido inteiramente da parcialidade e interesse, e não se apoiarem sobre os “assim dizem”, em lugar da razão, principalmente sendo autores e ao mesmo tempo parte interessada.
Se um homem pudesse banir toda parcialidade e colocar-se por um pouco em um estado de perfeita neutralidade, estaria ao alcance e reconheceria que, se acaso estimam-se as mulheres menos que aos homens e concede-se mais excelência e superioridade a estes que àquelas, o prejuízo e a precipitação são as únicas causas.
Se, depois de um exame judicioso, não aparecer outra diferença entre nós e eles mais, que a que sua tirania tem imaginado, ver-se-á o quanto eles são injustos[4], recusando-nos um poder, a prerrogativa a que temos tanto direito como eles; quanto são pouco generosos disputando-nos a igualdade de estima, que nos é devida e a pouca razão que têm de triunfar sobre o fundamento da posse em que estão de uma autoridade, que a violência e a usurpação têm depositado em suas mãos.

Fragmentos dos capítulos[5]
Se cada homem, em particular, fosse obrigado a declarar o que sente a respeito de nosso sexo, encontraríamos todos de acordo em dizer que nós nascemos para seu uso, que não somos próprias se não para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger uma casa, servir, obedecer e aprazer aos nossos amos, isto é, a eles homens. Tudo isso é admirável e mesmo um muçulmano não poderá avançar mais no meio de um serralho de escravas. Entretanto eu não posso considerar este raciocínio senão como grandes palavras, expressões ridículas e empoladas, que é mais fácil dizer do que provar.
Se os homens concordam que a razão[6] se serve tanto deles quanto de nós, está claro que ela regerá igualmente tanto uns como a outros; mas o caso é bem diferente. Os homens não podendo negar que nós somos criaturas racionais, querem provar-nos a sua opinião absurda, e os tratamentos injustos que recebemos, por uma condescendência cega às suas vontades; eu espero, entretanto, que as mulheres de bom senso se empenharão em fazer conhecer que elas merecem um melhor tratamento e não se submeterão servilmente a um orgulho tão mal fundado.
Em primeiro lugar, dizem eles, que a maior parte do nosso sexo tem bons intervalos, mas são de pouca duração; são relâmpagos passageiros de razão, que desvanecem-se rapidamente; para eles, somos semelhantes à Lua, que obstante por si mesma, não brilha senão por uma luz emprestada; não temos mais que um falso resplendor mais próprio a surpreender a admiração do que a merecê-la; nós somos inimigas da reflexão; a maior parte de nós não pensa se não por acaso, ou por arrebatamento, e não falta senão por uma rotina. Eis as graves acusações intentadas contra a maior parte das mulheres; mas concedendo-se de barato, que fosse verdadeiro o que eles objetam, não é incontestável que os mesmos argumentos podem reverter-se contra a principal parte dos homens? Entretanto, se quiséssemos concluir da mesma maneira, que é preciso conservá-los perpetuamente debaixo da nossa guarda, não triunfariam eles e não julgariam este raciocínio como uma prova de fraqueza de nosso espírito?
Qualquer experiência basta para mostrar que somos mais capazes de ter inspeção sobre os homens, do que eles sobre nós. Confiam-se as donzelas ao cuidado de uma mãe de família e elas ficam logo senhoras de uma casa, em idade em que os homens apenas se acham em estado de ouvir os preceitos de um mestre.
Todos sabem que a diferença dos sexos só é relativa ao corpo e não existe mais que nas partes propagadoras da espécie humana; porém, a alma que não concorre senão por sua união com o corpo, obra em tudo da mesma maneira sem atenção ao sexo. Nenhuma diferença existe entre a alma de um tolo e de um homem de espírito, ou de um ignorante e de um sábio, ou de um menino de quatro anos e um homem de quarenta. Ora, como esta diferença não é maior entre as almas dos homens e das mulheres, não se pode dizer que o corpo constitui alguma diferença real nas almas. Toda sua diferença, pois, vem da educação, do exercício e da impressão dos objetos externos, que nos cercam nas diversas circunstâncias da vida.
Todas as indagações da anatomia não tem ainda podido descobrir a menor diferença nesta parte entre os homens e as mulheres: nosso cérebro é perfeitamente semelhante ao deles[7]; nos recebemos as impressões dos sentidos como eles; formamos e conservamos as idéias pela imaginação e memória, da mesma maneira que eles; temos os mesmos órgãos e os aplicamos aos mesmos usos que eles; ouvimos pelos ouvidos, vemos pelos olhos e gostamos do prazer também como eles.
Não pode ser, portanto, senão uma inveja baixa e indigna, que os induz a privar-nos das vantagens a que temos de um direito tão natural, como eles. O pretexto que eles alegam é que o estudo e as ciências nos tornariam altivas e viciosas; mas este pretexto é tão desprezível e extravagante e bem digno de seu modo de obrar.
Além disto, seja-me permitido notar o círculo vicioso em que esse desprezível modo de pensar tem colocado os homens sem o perceberem. Porque a ciência nos é inútil? Porque somos excluídas dos cargos públicos; e porque somos excluídas dos cargos públicos? Porque não temos ciência.
Eles bem conhecem a injustiça que nos fazem; e que este conhecimento os reduz ao recurso de disfarçar a má fé à custa de sua própria razão. Porém deixemos falar uma vez a verdade: porque se interessam tanto em nos separar das ciências a que temos tanto direito como eles, se não pelo temor de que partilhemos com eles, ou mesmo os excedamos na administração dos cargos públicos, que quase sempre tão vergonhosamente desempenham?
O mesmo sórdido interesse que os instiga a invadir todo poder e dignidades, os determina a privar-nos desse conhecimento, que nos tornaria suas competidoras. Como a Natureza parece haver destinado os homens a ser nossos subalternos, eu lhes perdoaria voluntariamente a usurpação, pela qual nos têm tirado das mãos o embaraço dos empregos públicos, se sua injustiça ficasse satisfeita e parasse nisto, mas como um abismo cava outro e os vícios sempre andam juntos, eles não se satisfazem somente com a usurpação de toda autoridade, têm mesmo a ousadia de sustentar que ela lhes pertence de direito, pois a Natureza nos formou para ser-lhes perpetuamente sujeitas, por falta de habilidade necessária para partilhar com eles do governo e cargos públicos. Para refutar este extravagante modo de pensar, será preciso destruir os fundamentos sobre o qual está baseado.
Mas, parece que temos sido condenadas por um Juiz de sua própria escolha, um velho delirante, muito aferrado a seu próprio pensar para se deixar arrastar pelo de sua mulher. Catão, o sábio Catão[8], a quem a idade e os prejuízos não fizeram mais que obstinar no erro, quis antes morrer como um furioso, segundo seus próprios ditames, que viver como homem sensato, pela advertência de sua mulher. Esse Catão pronunciou a nossa sentença: é um juiz tão desinteressado que não podemos recusá-lo. Vejamos pois o que disse esse Oráculo. “ – Tratemos as mulheres como nossas iguais”, diz ele, “e elas se tornarão logo nossas senhoras”. Catão o disse, não preciso mais de prova. Além disso para obrigar os homens a provar com razão, seria reduzi-los ao silêncio; e o silêncio lhes seria tão insuportável, como a nós ouvi-los falar.
Mas suponhamos que Catão seja infalível em suas decisões, o que resulta daqui? Não tem as mulheres tanto direito de ser senhoras, como os homens? “Não”, diz Catão. Mas por quê? Porque não tem argumentos assaz convincentes que nos excite a curiosidade de ouvi-los por muito tempo.
“- Se nós tornamos as mulheres nossas iguais”, diz ele, “elas exigirão logo como tributo o que hoje recebem como uma graça”. Mas, qual é a graça que se nos concede? A mesma a que temos pretensões tão justas, como elas? Não tem as mulheres tanto direito, como os homens às dignidades e ao poder? Se temos, o sábio Catão não o disse; e se não o temos ele devia ter a condescendência de nos convencer.
Crendo-se-nos incapazes de aperfeiçoar o nosso entendimento, os homens nos tem inteiramente privado de todas as vantagens da educação e, por este meio, tem contribuído tanto quanto lhes é possível a fazer-nos criaturas destituídas de senso, tais quais eles tem nos figurado. Assim, faltas de educação, somos entregues a todas as extravagâncias porque nos tornamos desprezíveis; temos atraído sobre nós seus maus tratamentos por faltas de que eles tem sido os autores, tirando-nos os meios de evitá-las.
Eu julgo ter suficientemente demonstrado que injustamente os homens nos acusam de não ter aquela solidez de raciocínio, que atribuem a si com tanta confiança; nós temos o mesmo direito que eles, aos empregos públicos: a Natureza nos deu um gênio como a eles, tão capaz de os preencher e nossos corações são tão susceptíveis de virtudes, como nossas cabeças o são de aprender as ciências: nós temos espírito, força e coragem para defender um País e bastante prudência para governá-lo. Nós temos em geral os órgãos mais delicados. Se se comparar a estrutura dos corpos para decidir o grau de excelência dos dois sexos, não haverá mais contestação: eu julgo que os homens mesmo não terão dificuldade em nos ceder a este respeito: eles não podem negar que temos sobre si toda vantagem pelo mecanismo interno dos nossos corpos, pois que é em nós que se produz a mais bela e a mais considerável de todas as criauturas.
Em uma palavra, mostremos-lhes, pelo pouco que fazemos sem o socorro da educação, de quanto seríamos capazes se nos fizessem justiça. Obriguemo-los a envergonhar-se de si mesmos, se é possível, à vista de tantas injustiças que praticam conosco, e façamo-los enfim confessar que a menor das mulheres merece um melhor tratamento de sua parte, do que hoje prodigalizam a mais digna entre nós.ias gerais que os homens concebem de nosso sexo, sobre que fundamento baseiam suas opinixceleutralidade, estaria ao alcance e r
[1] Esta é uma versão ‘compacta’ da Introdução. Acreditamos que, mesmo sendo subtraído alguns parágrafos, esta se faz necessária por revelar nas palavras de Nísia o que ela pretendia com seu livro.
[2] No original: “Potlos, quer sábios, quer ignorantes, supõe que os homens são realmente superiores às mulheres...”
[3] Nísia se refere várias vezes ao termo “prejuízo”, o qual deve ser entendido como “preconceito”.
[4] Daí a segunda parte do título e também do livro: “... e Injustiça dos Homens”. À medida que a autora prova os direitos que as muheres têm às diversas instâncias da vida social, política e cultural, ela enfatiza o caráter injusto dos homens em negar estes direitos.
[5] O livro é composto por 6 capítulos: Que caso os homens fazem das mulheres, e se é com justiça; Se os homens são mais próprios que as mulheres para governar; Se as mulheres são ou não próprias a preencher os cargos públicos; Se as mulheres são naturalmente capazes de ensinar as ciências ou não; Se as mulheres são naturalmente próprias, ou não, para os empregos; e a Conclusão. Assim como a Introdução, transcrevemos e organizamos as principais idéias de Nísia através dos principais parágrafos de cada capítulo.
[6] Imbuída do espírito e ideais divulgados pelo Iluminismo, a autora coloca desde o início os conceitos filosóficos fundamentais em que vai se apoiar no desenvolvimento de sua argumentação. Entre eles e em posição de destaque, temos o “primado da razão”, isto é: a crença de que o homem tem uma vantagem única sobre os demais seres vivos, porque pode raciocinar. Para os iluministas, a ênfase no uso da razão é o melhor método para se alcançar a verdade. Com base nesta exigência – a razão – Nísia vai desmontar toda argumentação masculina de superioridade.
[7] Desde o início do século XIX há notícias de “experiências científicas” que visavam “provar” a superioridade do homem branco sobre a mulher, bem como sobre o negro e o índio. Apesar de lançarem mão de verdadeiras fraudes científicas, ao final do século tais experiências eram consideradas por muitos como absolutamente corretas, reforçando a superioridade de “sexo” e a racial. Nísia Floresta, já em 1832, antecipa-se a estas conclusões, ao pregar a mesma capacidade intelectual para mulheres e homens.
[8] Marco Pórcio Catão, o Jovem (95-46 a.C..), bisneto de Catão, o Antigo. Filósofo estóico, conservador inflexível, que considerava os princípios mais importantes que os compromissos.
Nísia parece identificar nele o tal juiz “delirante”, por suas idéias preconceituosas sobre a mulher, muito divulgadas nos séculos passados. A autora discute com o filósofo, intercalando perguntas e argumentos a cada citação que faz dele. Pode-se verificar a habilidade de Nísia em se utilizar de trechos de Catão contra os próprios homens, revertendo suas afirmações a favor da mulher.

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